quinta-feira, 27 novembro, 2025

“Luto é o preço que pagamos por ter amado profundamente”

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A psicóloga gaúcha Maria Emília Bottini tem dedicado tempo para atendimentos em perdas nos diferentes tipos de luto de forma online e presencial. Ela é a entrevistada da Folha Desbravador desta semana para falar sobre morte e luto.

Folha Desbravador – Como diferentes culturas celebram o luto?

Maria Emília Bottini – O luto é uma experiência universal, mas cada cultura tem formas singulares de expressá-lo. No Japão, por exemplo, o luto envolve cerimônias silenciosas e gestos de reverência aos ancestrais. Na África há rituais coletivos com cantos e danças que celebram a vida daquele que partiu, acho isso simplesmente lindo. No México, o Dia de los Muertos é uma festa colorida que reafirma o vínculo entre vivos e mortos.

Vi esses dias que na Indonésia, mais especificamente a etnia Toraja, na ilha de Sulawesi em que os corpos são exumados e expostos em um ritual chamado de Ma’nene (Cerimônia de Limpeza de Cadáveres) envolve a limpezas e troca de roupas do morto, o reparo de caixões, desfile e conservação. Para nossa cultura isso seria impensável. Já nas tradições cristãs ocidentais, o luto tende a ser mais reservado e introspectivo. Cada cultura, tem maneira própria de honrar seus entes queridos, é bom lembrar que presente fez parte da história da humanidade.

Folha – Antigamente as pessoas se resguardavam por longos períodos em luto. Hoje isso já não acontece mais. Por que esta mudança?

Maria Emília – De fato, antigamente as pessoas expressavam a dor da perda por longos períodos inclusive com uso de roupas pretas, que simbolizava a ausência de luz e vida, a seriedade da perda e servia como um sinal externo de respeito ao falecido e à família.

Com a modernidade e o ritmo acelerado da vida, percebe-se que houve uma diminuição dos rituais coletivos de luto. As pessoas passaram a ter menos tempo e espaço para viver o sofrimento e a dor que a perda traz, a vida segue e é preciso retornar as atividades e aprender a lidar com a perda e o luto rapidamente. Na sociedade contemporânea que valoriza a produtividade e evita o contato com a dor, com o sofrimento, com a tristeza, isso leva muitos enlutados a retomarem a vida rapidamente e por vezes acabam mais tarde dando-se conta que não se permitiram enfrentar a dor da perda. Antes, o luto era socialmente reconhecido através das roupas pretas, do afastamento social, dos rituais religiosos, das missas de sétimo dia/um ano de falecimento, isso validava o sofrimento do enlutado, ele tinha um espaço para a compreensão do momento de vida que estava enfrentando. Hoje, o luto se tornou um processo mais privado, íntimo e solitário.

Folha – Qual a melhor forma de superar o luto e a perda?

Maria Emília – Hoje não falamos em superar o luto porque a dor de uma perda significativa não é algo que supera, que se apaga, não se esquece, se aprende a conviver com a dor, com o vazio. A ideia de superação é como se o luto tivesse uma data de validade um tempo para acabar, pode ser prejudicial e irreal essa ideia, ignorando a complexidade e a individualidade do processo que o envolve. Com o tempo a dor da perda é acomodada dentro de si, tornando o luto algo possível de ser atravessado e enfrentando, embora seja um processo individual e não linear que pode levar tempo e este é particular e intransferível. O processo de luto vai depender muito do tipo de morte (esperada, inesperada e pelo suicídio) e a relação que se tinha com quem morreu. Não há uma fórmula única para o enfrentamento do processo de luto. Cada pessoa tem seu tempo e sua maneira de passar pela dor. O mais importante é permitir-se sentir, sem pressa de estar bem, haverá momentos em que não vai estar bem e tudo bem. Falar sobre a perda, buscar apoio emocional com psicólogos ou qualquer outro tipo de apoio é importante e necessário, escrever cartas, participar de grupos de escuta ou psicoterapia em grupo de luto podem ajudar. O luto não é algo que se supera, mas algo que se integra à vida, se elabora quando aprendemos a conviver com a ausência e transformamos a dor em memória e afeto.

Folha – Vou partir amanhã. Como posso me preparar e preparar meus familiares e amigos?

Maria Emília – Todos nós estamos neste lugar do partir amanhã, não sabemos quando será este amanhã, mas é uma certeza, somos seres para a morte. Falar da morte, do morrer também seria uma forma de nos prepararmos para a nossa própria finitude, mas na nossa cultura esse é um assunto proibitivo e ainda cheio de tabus. Quando a morte chega em nossas vidas acaba se tornando um susto, algo inesperado causando imenso sofrimento e dor. A negação da morte não nos ajuda, muito pelo contrário nos atrapalha em decisões necessárias no final da vida. Se estamos perto ou longe da morte não sabemos, mas o fato é tudo o que é vivo, morre.

Considerando que temos um prognóstico de um tempo limitado para ser vivido, é preciso estimular as conversas necessárias sobre decisões, sobre pendências a serem tomadas a respeito dos bens e desejos finais, é permitir a expressão de sentimentos e afetos, é oportunizar as desculpas necessárias, é fazer escolhas sobre com quem e como queremos estar e passar os últimos dias. Que tipo de diretivas de vontades queremos, elas são possíveis escrevê-las antes (ainda dão desconhecidas da população) para que ao final sejam respeitadas, como exemplo: não querer reanimação, não quero ir ao hospital e sim em casa, quer o alívio da dor, entre tantas outras questões. É realizar os pequenos desejos, é tanta coisa, porque o final da vida ainda é vida. Eu diria que a melhor forma de se preparar para a morte é vivendo, e por viver entendo enfrentar o que ela nos apresenta de bom e nem tão bom, de prazer e de dor, é fazer o percurso, é seguir o movimento com coragem. Morrer é parte do viver. Tem um provérbio africano que gosto muito “que a morte me encontre vivo”. É o melhor antídoto, viver intensamente para que a morte nos encontre vivo.  

Preparar-se para partir é também cuidar dos que ficam, nas diferentes linguagens artísticas encontramos alguns exemplos como no filme Minha Vida (My Life, 1993) que um pai que sabe que vai morrer e deixa gravações para o filho que não verá crescer. Ou mesmo brasileira Ana Michele Soares que escreveu três livros durante o percurso de cuidados paliativos que são: Enquanto eu respirar, Vida Inteira e Entre a lucidez e a esperança (finalizado nos últimos dias de vida na UTI). São exemplos de como a arte pode nos ajudar a enfrentar o tema da finitude.

Folha – Tenho um familiar/amigo que vai partir. Como posso me preparar para que esta partida seja menos dolorosa?

Maria Emília – A partida de familiares e amigos são dolorosas sobretudo o sofrimento é pautado na relação afetiva que se estabeleceu. A dor é a medida do envolvimento afetivo. Recomendo para os que conseguirem estar presente é o mais importante de tudo. Às vezes não há palavras para expressar a falta que já sentimos, o silêncio, o toque, o olhar já dizem o que as palavras não alcançam. Evite frases prontas e permita-se viver a tristeza e dor da despedida, da partida, entendo que não é fácil, lembrando que é necessário e várias formas vamos enfrentar despedidas e partidas ao longo do processo de viver. Boas conversar, lembranças de bons momentos, verbalizar os sentimentos com amor e carinho que sentimos, ajuda tanto quem vai quanto quem fica. A dor da perda é inevitável.

Folha – Qual é a diferença entre luto saudável e luto patológico?

Maria Emília – O luto saudável é aquele em que, com o tempo, a pessoa consegue ressignificar a perda e retomar gradualmente sua vida. Entendo que é preciso passar pelo luto e que ele é complexo e difícil, mas necessário.

Já o luto patológico ocorre quando a dor se torna paralisante e persistente, impedindo o cotidiano, a retomada da vida causando em algumas vezes a depressão, o isolamento ou culpa excessiva dependendo do tipo de morte e da idade de quem morreu. Nesses casos, o acompanhamento psicoterápico e medicamentosos é fundamental para reconstruir o sentido da vida, poder falar sobre a dor é uma forma de processar o luto permitindo retomar e retornar a vida, não mais como era antes, mas encontrando forças internas para se colocar diante dela de uma forma diferente e por vezes mais fortalecido.

Folha – Como lidar com a sensação de vazio e a falta que a pessoa deixa?

Maria Emília – Eu gosto muito de trabalhar com as linguagens artísticas em atendimentos com enlutados, utilizo a literatura, cinema, música, escrita (recomendo que meus pacientes tenha um caderno), desenhos… Tem um livro da Anna Llenas que eu gosto muito que se chama O vazio, a personagem Júlia percebe, de repente, um vazio dentro de si um buraco que nada consegue preencher. Ela tenta várias estratégias (comida, brinquedos, distrações, companhia…), mas o vazio persiste. Aos poucos Julia aprende que não se trata de consertar o buraco com coisas externas, e sim de acolher o que sente, nomear a falta e permitir que esse espaço se transforme: o vazio torna-se um lugar para criar, crescer e se conectar de novo consigo mesma e com os outros. O recado deste livro é que a falta nunca desaparece dentro de si, mas pode ser transformada, apaziguada e administrada de alguma forma é esse o processo do luto. Criar formas simbólicas de presença como escrever cartas, visitar lugares significativos, ir ao cemitério ou cultivar um hábito que lembre a pessoa que morreu ajuda a lidar com a dor que a perda traz. O vazio é também um espaço de amor: ele existe porque alguém foi importante. Com o tempo o vazio, deixa de ser um abismo e se torna um espaço de celebrar a memória do que existiu e de alguma forma ainda existe.

Folha – O que podemos fazer quando sentimos que “não estamos conseguindo seguir em frente”?

Maria Emília – Primeiro, reconhecer esse sentimento sem se culpar. O luto é um processo que pode ter altos e baixos, idas e vindas, sentir-se bem e sentir-se mal. Buscar apoio de pessoas de confiança, participar de grupos de luto ou procurar ajuda profissional de psicóloga ou de qualquer outro profissional pode ser essencial para ter um lugar para chorar a dor da perda, para falar sobre o ente querido que faleceu e o quanto ele foi importante ou mesmo as pendências (financeiras, emocionais…) que deixou. O seguir em frente muitas vezes é conseguir sair da cama, tomar um banho, abrir a janela, no início coisas tão pequenas e comuns são muito doloridas de serem feitas.

Folha – Qual o papel da espiritualidade ou da fé nesse processo?

Maria Emília – Em relação ao luto, muitas são as crenças religiosas. A espiritualidade religiosa ou não pode oferecer conforto, pois ajuda a compreender a morte como parte de um ciclo maior. Ela dá sentido ao que parece sem sentido e oferece aos que acreditam a esperança de continuidade, seja em outra forma de existência, seja na força do amor que permanece. É preciso reforçar que em alguns tipos de luto aparece a revolta com o ser transcendente. Isso é muito comum. Mas ter uma espiritualidade também pode ajudar a enfrentar a dor e sofrimento que a perda traz.

Folha – Como amigos e familiares podem oferecer apoio real, sem serem invasivos?

Maria Emília – Diante do luto, muitas pessoas por não conseguirem estar junto no sofrimento do outro, porque remete muitas vezes aos seus sofrimentos, simplesmente desaparecem, não conseguem ficar e ajudar. Muitos enlutados reclamam que estão sozinhos para enfrentar a dor e a perda. Lembrando que o apoio emocional nasce primeiramente da escuta e respeito. Em muitos casos os amigos e familiares querem tentar animar ou distrair, mas muitas vezes não funciona e frustram-se neste desejo, pois o enlutado está tentando processar o que acontecer, da forma que aconteceu e é difícil animar-se, distrair-se porque a dor é imensa e precisa ser compreendida. O mais respeitoso é estar presente e acolher o que o enlutado sente e deseja naquele momento, sem julgamentos, sem pressões. É preciso fôlego para estar junto nestes momentos.  Pode colocar-se à disposição, oferecer ajuda, perceber o que é possível ajudar ou não como um café, uma mensagem, uma flor, uma comida, um gesto simples tudo isso comunica cuidado e afeto, tão necessário em momentos de desamparo e profunda tristeza. Respeitar o ritmo e tempos e movimentos da pessoa enlutada e deixar claro que ela não está sozinha é demonstrar respeito e aceitação do sofrimento do outro.

Folha – Como cultuar o Dia de Finados e outras datas significativas (aniversários, Natal, etc.) sem se desestabilizar emocionalmente?

Maria Emília – Datas comemorativas geralmente são complexas para os enlutados sobretudo no primeiro ano de falecimento, tudo é a primeira vez sem o ente querido. Essas datas sempre despertam lembranças e saudade. É importante planejar como vivê-las: criar pequenos rituais, como acender uma vela, ouvir uma música que se ouvia junto ou fazer algo em homenagem à pessoa através da escrita, colagem… Reunir-se com quem compartilha a perda pode trazer conforto. O mais importante é acolher o que vier se vier tristeza, que ela tenha espaço; se vier alegria, que ela também seja permitida.

O Dia de Finados é um momento para que os vivos se lembrarem que também serão os mortos de amanhã. Seremos visitados? E por quem? É uma data de homenagem às pessoas que já faleceram, é costume que pessoas de diferentes religiões visitem seus entes queridos em cemitérios para prestar sua reverência em memória aos mortos. Esse ritual é secular e universal. É um momento de memória de rememorar.  Gosto da ideia apresentada na animação mexicana Viva – a vida é uma festa (2017), em que os mexicanos celebram os dias dos mortos (finados) de maneira festiva e colorida. É possível perceber que os mexicanos, diferentemente dos brasileiros, festejam os mortos com flores, retratos das pessoas mortas, alimentos, escutam músicas que relembrem seus entes queridos, realizam oferendas com velas, além da exposição de caveiras pintadas com cores contrastantes. A ideia é que pudéssemos transpor a cultura e também fazermos rituais de celebração da vida dos que já não estão entre nós, mas ainda assim vivem em nossas memórias.

Folha – Manter rituais de memória – como visitar o túmulo ou guardar objetos – ajuda ou dificulta o processo de luto?

Maria Emília – Os rituais de memória, são necessários e importante, mas vai depender de como esses rituais são vividos pelos enlutados e qual a frequência. Muitos são os enlutados que se utilizam da escrita para registrar suas dores como o livro O brilho do bronze, em que o Bóris Fausto em que relata seus dias de luto e as várias idas ao cemitério após a perda da esposa de anos de parceria. Cris Guerra escreve um livro Para Francisco, que estava em sua barriga quando o parceiro faleceu repentinamente.

Esses dois exemplos conseguem demonstrar que o ritual da escrita ajudou os enlutados a transformar a dor em palavras, em compreensão. Portanto quando trazem consolo e conexão, ajudam a manter viva a memória, celebram a vida do ente querido e os ajudam na elaboração da perda e da dor. Mas, se se tornam uma forma de sofrimento e aprisionamento ao passado, podem dificultar o processo de luto. O equilíbrio é recomendável.

Folha – Que mensagem a senhora deixa para quem enfrenta uma perda recente?

Maria Emília – Aos que perderam seus entes queridos recentemente deixo meu profundo sentimento e meu abraço e a certeza que o tsunami vai passar, mas é preciso passar por ele. Recomendo que se permita viver o que sente, sem pressa de ficar bem, tudo bem não estar bem. Inclusive é um livro lindo sobre luto e perda lido recentemente com este título Tudo bem não estar bem – Vivendo o luto e a perda em mundo que não aceita o sofrimento de Megan Devine, que o escreveu após a perda do esposo. Não esqueça que a dor e o sofrimento são legítimos e fazem parte do amor e do envolvimento afetivo. Lembre-se: o luto é o preço que pagamos por ter amado profundamente. Cuide-se, procure apoio se necessitar.  O tempo não apaga o amor ele o transforma em presença interior, quem amamos de alguma forma sempre estará conosco enquanto nos lembrarmos deles.

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